Martha Martyres

Martha Martyres

Radialista, diretora da rádio Penedo FM, âncora do jornalismo no Programa Lance Livre

Postado em 05/10/2009 09:00

Olhar sobre o rio

O sol se põe em terras sergipanas e eu me debruço sobre a Rocheira olhando o rio. É fim de tarde e começo de cheia. A água desce murmurosa e segue caminho para o mar em sua periódica inundação. Não importa, nesse caminhar, o que digam os técnicos e tecnocratas. Se há comissões que definem o tamanho de sua vazão, não podem impor a cor das suas águas e nem a velocidade com que percorre o caminho. Não importa o tempo de recorrência. Importa o agora, o presente, o instante.

Lanço meu olhar além da linha visível, sonho com o rio de minha infância.

São Francisco da minha vida! Vejo-me criança, peneira na mão: “cai cai tanajura na panela da gordura”. Vejo-me a percorrer a margem do rio, na Saúde, pescando de jereré, “ariando” panelas, colocando roupas para “quarar”, pulando das canoas que gentilmente permitiam que as fizéssemos de trampolim, nadando em braçadas largas para o estado de graça de voltar ao útero de minha mãe.

Esse é o meu rio! Brinquedo da minha infância, amigo da adolescência, companheiro da maturidade.

Em meus devaneios, vejo as canoas singrando as suas águas. Posso sentir o cheiro dos bolinhos fabricados de massa de pó de arroz, do pirão feito com farinha, para pescar piabas; ouço o chiado dos cutelos raspando as tabocas para fazer os covos e meu estômago se anima ao captar o aroma do camarão torrado e da farinha quentinha no forno da casa de farinha.
Volto aos barrancos, à curva do rio, ao refúgio dos peixes. Xiras, traíras, piranhas, piaus, mandins, mussuns…e como se fizéssemos um pacto de sangue, o rio incorpora-se ao meu corpo, entranha-se na minha alma.

Meu coração desanda o ver o rio. Ora sou remanso, ora sou correnteza, ora sou água ou nem sei quem sou…

Ouço o ruído das águas correndo, os estalos da vegetação, o assobio dos pássaros.
E agora ele vem barrento, carregando consigo as cores de suas margens desmatadas pela ignorância e ambição dos homens. O rio não é como o homem, que tem como optar. Ele segue e deságua. Assinala sua presença em aflições e bênçãos, mas é fiel ao seu povo.

A enchente é o descanso do rio em seu leito e nele traz corpos colados ao seu ou que aguardam a hora de entrelaçar-se. É o seu leito que se abre, alaga o sertão, arrasta erva braba e mandacaru, traz ninho de cobra e tatu.

Suas águas vão passando. Carregam troncos, baronesas, árvores mortas, e o céu chora de emoção contribuindo para sua grandeza.

E o povo de suas margens emudece diante de sua força, faz festa, mede minuto a minuto a subida de suas águas. Os mais afoitos se alegram e se transformam na criança que fui. Pulam do cais, das canoas, experimentam a sensação sublime de flutuar sobre ele.
As cidades, os lugarejos vão ficando para trás e, de repente, lá na foz, o mar abre os braços numa demonstração de incontestável afeto.

Esse é o meu rio que busca revitalização e respeito e que, numa demonstração de solidariedade, vem trazer fartura para o povo que mesmo em suas margens tem fome e sede. Meu rio, nosso rio que vem mostrar aos homens que nenhum tipo de poder ou quantidade de dinheiro podem ser mais fortes do que a fé do povo e a força da natureza.

Quando as águas baixarem, São Francisco, o rio, terá cumprido o seu destino na integração nacional ofertando vida a milhões de brasileiros. São Francisco, o santo, vai descer do altar lá na Serra da Canastra e percorre-lo, até a foz, recontando os animais, ajuntando os que se perderam, curando os que ficaram feridos e colhendo ramos de arnica e carqueja, que são remédios para todos os males.

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  • ROBERTO É isso Martha, o nosso Rio São Francisco tem histórias por mais de cinco séculos,fazendo a vida,sendo o companheiro das horas incertas e aventureiras. Ao falar do Rio, são tantas as perguntas para quem não conhece o que é um Rio manso,amigo, romancista cheio de vida... Outra vez me perguntaram: da pra tomar banho nele - se ficar nú os peixes mexem com a pessoas - paga quanto pra entrar na água, da pra acreditar. São estas as nossas Histórias e muitas outras.
  • Paulo Santos Ao ler seu texto me bate a lembrança de quando muitas vezes no fim da tarde ou começo da manhão ficava a observar o nosso Velho Chico, e imediatamente me vem a lembrança de um amigo (Francisco Salatiel Cupertino ou simplesmente Sala), quando varias vezes ficamos a observar esse maravilhoso rio e entoava-mos algumas canções com o acompanhamento do violão do nobre amigo. Há Penedo que saudade! dos carnavais na Musical e o de rua em frente ao Teatro 7 de setembro, dos bons forrós no Santa Cruz, ao som do Trio Copacabana e dos bailes na Filó, dos bate papos com os amigos nos barzinhos nas praças.
  • Maciel Oliveira Querida Martha, Me emocionei ao ler esse texto, onde me dar mais ânimo e forças para defender o NOSSO VELHO CHICO, o rio que tanto sofre diante das inconsequentes ações antropicas e que poucos tem coragem de falar e de defeder. Obrigado por ser mais uma beiradeira desse Rio que tanto nos une e nos orgulha!