Martha Martyres

Martha Martyres

Radialista, diretora da rádio Penedo FM, âncora do jornalismo no Programa Lance Livre

Postado em 09/11/2009 15:21

As mulheres também morrem quando morrem os seus sonhos

Fui procurada por uma mulher jovem, bonita, provavelmente beirando os trinta anos, lábios machucados por traços de violência física.


Não me surpreendi. Muitas mulheres que sofrem agressões físicas me procuram para denunciar, pedir conselhos e, infelizmente, na maioria das vezes, apenas para desabafar. Digo infelizmente porque normalmente esses são os chamados “crimes de ação privada” e somente a elas, cabe o direito de optar ou não pela denúncia formal.


E minha sala, aqui na rádio, a sala de visitas da minha casa ou qualquer cantinho mais discreto transforma-se naquilo que deveria ser uma delegacia especializada com profissionais qualificados e competentes para receber, orientar e garantir proteção a essas mulheres.
Infelizmente, continuamos criando governos socialmente irresponsáveis porque elegemos governantes na condição de eleitores-consumidores em recesso e ainda sobrevivemos em uma sociedade omissa.


Não me surpreendi ao receber uma mulher visivelmente agredida. Surpresa fiquei ao receber uma mulher que me procurava para pedir um exemplar do meu “Despedaços” porque o seu fora rasgado juntamente com dezenas de folhas de papel que continham seus escritos.
Papéis rasgados por um marido ciumento, ignorante, que considera que “escrito não enche barriga”.


Sua sinceridade e sua resignação aliadas à sua vontade de ter de volta um livreto simples, que retrata momentos de uma vida tão comum me fizeram ver que os resquícios da intransigência e do totalitarismo masculinos ainda são uma cruel realidade no nosso cotidiano.


A violência contra a mulher, tão presente no noticiário, não é apenas a física. Não se mata mulheres apenas com facadas, tiros ou pauladas. As mulheres também morrem pela incompreensão, pela indiferença, pelo desrespeito aos seus desejos.


As mulheres também morrem quando morrem os seus sonhos.


Há algum tempo li um artigo do escritor Ignácio de Loyola Brandão em que ele abordava esse tipo de violência, narrando casos arrepiantes.


Ele conta a história de um noivo que depois de descobrir que a noiva escrevia fez tudo para ler e ao terminar, enfiou o dedo na garganta e vomitou sobre as páginas. O marido de outra recolheu tudo o que ela escreveu e pões fogo. Outro pegou os originais datilografados do livro que sua mulher estava escrevendo e os transformou em barquinhos e aviõeszinhos que foram atirados da janela do apartamento do décimo primeiro andar onde morava..


O marido dessa mulher que me procurou disse que “escrito não enche barriga”, mas quando se trata do ser humano, tudo é possível. O marido de uma escritora de Campo Grande simplesmente encheu uma panela com água, deixou ferver, colocou os versos que ela tinha escrito durante um ano e fez uma sopa obrigando-a a tomar.


O pai de uma menina de 19 anos foi com ela ao supermercado, fez as compras e obrigou a filha a entregar, como pagamento, as páginas de um conto que ela estava escrevendo. Naturalmente, o caixa não aceitou e ele, indignado, gritava na frente de todo mundo que “escritos não pagam dívidas”.


Outro pai, um pastor de Vitória da Conquista, castigou a filha severamente, deixando-a trancada dentro de um quarto escuro por vários dias porque, segundo ele, “mulher séria não escreve”.
O namorado de uma garota no Rio Grande do Sul pegou as páginas do caderno em que ela escrevia e as transformou em papel higiênico.


Em pleno século XXI, quando as perspectivas são de que as mulheres, cada vez mais, assumirão os mais importantes papéis na liderança mundial, é quase inacreditável que coisas desse tipo aconteçam. Quase.


Não é de estranhar que muitas mulheres estejam desorientadas. O machismo persiste dentro de uma sociedade que insiste em fazer a cabeça da mulher no sentido de exaltar sua feminilidade, transformando-a em um produto sexy, bonito, perfumado e medianamente inteligente, capaz de fazer discursos hipócritas de recato e espertas o suficiente para serem compreensivas com os “deslizes” de seus companheiros. Afinal, eles são homens e, na nossa cultura, continuam podendo!


Ainda há muitos homens e mulheres que se recusam a pensar, agir, criar, mudar, ser. Não percebem o quanto é grave esse tipo de violência. A violência que impede o crescimento como pessoa, que avilta.


E muitas mulheres continuam sendo mortas, diariamente, sem manchetes, sem obituário, sem registro. Uma violência silenciosa que não conhece limites.
 

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