Arthur Lira

Arthur Lira

Advogado do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Zumbi dos Palmares e Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Postado em 31/03/2021 09:52

Vidas presas importam

Na última sexta-feira (26), a apresentadora Xuxa Meneghel, participou de uma live, no perfil da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que tinha como objetivo discutir os direitos dos animais e nada mais que isso. Entretanto, em uma colocação desprezível, a rainha dos baixinhos sugere que testes de remédios, cosméticos e vacinas sejam realizados em presidiários porque desta forma “eles serviriam para alguma coisa antes de morrer”, visto que muitos estão presos para sempre.

Posteriormente, após a repercussão negativa das colocações, a apresentadora utilizou suas redes sociais para pedir desculpas sobre a declaração. Ocorre que, a colocação externada por Xuxa Meneghel reflete o pensamento de parcela da sociedade que não consegue compreender que a privação de liberdade não resulta na privação do conjunto de direitos inerentes à dignidade humana. Ou seja, pessoas encarceradas permanecem sendo pessoas.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, estabeleceu um rol de direitos e garantias fundamentais que visam proteger o indivíduo contra o abuso de poder. Neste sentido, o legislador constituinte originário estabeleceu que ninguém será submetido a tratamento degradante (art. 5º, III), bem como que não haverá pena cruel (art. 5º, XLVII, e) e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX).

Cumpre destacar que neste aspecto não houve nenhuma inovação promovida durante a Assembleia constituinte de 1987, visto que os dispositivos supracitados estão em conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), a qual o Brasil é signatário desde 1992. Sendo assim, a vedação de penas cruéis, o respeito à integridade física e moral, a finalidade de readaptação dos condenados, são garantias da civilização e devidamente discutidas no Pacto de São José da Costa Rica.

Apesar da superação legislativa em torno da concepção democrática do sistema carcerário, a cultura inquisitória do próprio sistema de justiça criminal e o senso comum da vingança fomentado pela mídia, faz com que uma parcela significante da sociedade contemporânea acredite que as pessoas privadas de liberdade são indesejáveis e precisam ser descartadas da sociedade ou, em última análise, caso isso não seja possível, que “pelo menos sirvam para alguma coisa”, como dito por Xuxa Meneghel.

Entretanto, o pensamento capitaneado por Xuxa Meneghel é incompatível com o Estado democrático de direito, tendo em vista que os limites para o exercício do poder precisam ser respeitados e não vistos como empecilho. Pelo contrário, o discurso da apresentadora é fruto da racionalidade neoliberal que trata tudo e todos como objetos negociáveis na busca incessante por lucro ou vantagem pessoal, como destaca Rubens Casara.

Sendo assim, ao rechaçar os limites impostos pelos direitos e garantias fundamentais expressamente previstos na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos, a apresentadora assume as concepções do Estado Pós-democrático, em que a ausência de limites torna-se regra e o papel do estado é atender os anseios de quem tem poder econômico.

Por fim, mas não menos importante, cumpre destacar o Habeas Corpus histórico impetrado em 1937 por Sobral Pinto, quando instado para patrocinar a causa de um preso político mantido em uma precária situação durante a privação de liberdade, na qual pugnou que o paciente recebesse tratamento igual dos animais, visto que estes gozavam de tutelas mais eficazes do que seu cliente. Portanto, quase um século depois, parece que os desafios permanecem os mesmos.
 

Comentários comentar agora ❯

  • Valter Cruz Vidas Presas Importam - https://www.instagram.com/p/CQ_NqwVpQuo/